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Direito de Família

Os novos paradigmas do direito de família: a eficácia jurídica das uniões simultâneas à luz constitucional e jurisprudencial

 

INTRODUÇÃO

 

A sustentação dos princípios como base para o ordenamento jurídico pátrio tem como um de seus objetivos resguardar o conceito plural da família eudemonista ressalvado pela Constituição Federal em contrapartida aos conceitos clássicos tanto do Código Civil, como da própria Lex Fundamentalis anterior. Esta análise resulta da necessidade de concretização da proteção familiar garantida pela Constituição, inexistindo espaço para veiculação de modelos que restrinjam a liberdade inerente a cada um.

Muitas são as divergências na doutrina pátria quanto ao reconhecimento das uniões simultâneas ante a influência da intervenção do Estado como limitador nas relações pessoais. Assim, a análise do histórico social e jurídico da família é primordial para a compreensão das famílias no plano atual.

Para a compreensão acerca das famílias simultâneas se faz necessário um comparativo entre o concubinato, a união estável e o matrimônio, em que pese haja legislação especial para cada instituto, a jurisprudência e até a doutrina ainda os confundem e os aplicam de maneira distinta.

Por fim, enfrenta-se a prática da questão aqui abordada. Esclarecemos como três esferas do judiciário encaram o tema: a Justiça Estadual do Rio Grande do Sul, a Justiça Federal – no âmbito previdenciário e os Tribunais Superiores.

 

PARTE I – O PAPEL DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA NA FORMAÇÃO E RECONHECIMENTO DAS ENTIDADES FAMILIARES NO ORDENAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO

 

1 A TUTELA FAMILIAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO

 

A Constituição Federal traz a família como núcleo abrangido pela proteção estatal, posto que é base da sociedade. A determinação trazida pelo art. 226 deve ser interpretada de forma abrangente, como numerus apertus, não podendo utilizar-se dos exemplos ali lançados de forma taxativa. Esta abertura permite à jurisprudência tratamento igualitário frente à pluridade e amplitude familiar conforme será explanado nos parágrafos seguintes.

1.1 A EVOLUÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA: UMA ANÁLISE DA TRAJETÓRIA HISTÓRICA

 

O estudo sobre a família está diretamente ligada à vida, seu estudo se torna indispensável para a compreensão de sociedade. A família é o berço e manutenção de toda organização social e a grande responsável pela transmissão cultural e, dentre as instituições públicas e privadas, é a que tem maior valor. Qualquer pessoa ao nascer integra esta entidade natural.

Sua definição depende do contexto histórico que está sendo analisado, pois seu conceito sempre foi mutável. Pode ser compreendida contemporaneamente como agrupamento social de indivíduos que se identifiquem e que possuam laço afetivo em comum. Destaca-se pela unicidade econômica, religiosa, política e jurisdicional. Historicamente as definições diversas sobre o surgimento dos agrupamentos familiares fazem com que o encontro de um denominador comum seja uma tarefa árdua. Há divergência sobre a concepção de que a família sempre foi patriarcal e monogâmica. Para muitos doutrinadores, embora sem comprovação científica, o matriarcado antecede o patriarcado e funcionava como garantia de descendência e sucessão, uma vez que era a mulher que dava a certeza da origem biológica dos filhos.

Não há como precisar o momento em que foi determinada a proibição de relacionamento entre consanguíneos, sendo que os homens guiavam-se apenas pelo desejo sexual, assim a proibição de relações incestuosas surgiu como tentativa de preservação da espécie, por instinto de sobrevivência.

Na poligamia da fase média e superior da barbárie houve o surgimento efetivo da monogamia, como dever exclusivo da mulher, sendo os homens livres para relacionar-se sexualmente com outros parceiros. Na família romana, a consolidação da monogamia feminina resulta na fortificação do poder patriarcal. O pater familias tinha direito e poder absoluto sobre todos os membros de seu núcleo inclusive sobre os filhos, as mulheres e escravos, sobre sua vida e sua morte. A ideia de um modelo inalterado desde os tempos romanos não é plausível, e trata-se de tema introduzido religiosamente através da bíblia com a propagação do cristianismo.

Já no império romano, o concubinato era forma comum de se relacionar, embora fosse considerada inferior ao matrimônio, era forma lícita de constituição familiar. Além do concubinato, a sociedade romana mostrava-se plural no que se referiam às uniões.

Ao longo dos séculos – da idade média a idade moderna – ainda que tenha sido veementemente combatido pela igreja católica, o concubinato, fora do espaço restrito da monogamia, sempre existiu e surtiu efeitos diversos no sistema jurídico.

Enquanto na idade moderna, com a Revolução Industrial, o ideal era a expansão e produção em massa com foco na lucratividade, a idade pós-moderna se destaca pela ultra valorização de sentimento. O patrimônio, preservado desde a era romana, deixa de ser o foco trazendo o afeto como protagonista das relações. Neste período a afetividade ganha seu espaço, tornando-se a grande propulsora das constituições familiares. No Brasil, ao longo do século XX, o êxodo rural e o início da igualdade entre os sexos foram determinantes para a ruptura com os conceitos do século XIX. A pílula anticoncepcional e a Lei 4.121/62 – Estatuto da mulher casada – foi o marco para o início da emancipação feminina, posto que anteriormente a mulher casada era considerada parcialmente incapaz.

A família patriarcal negava direitos aos demais membros, deixando o poder concentrado na mão do homem, o que teve fim, principalmente, com a consagração de novos direitos sociais introduzidos pelo novo texto constitucional, em especial ao que tange o princípio da dignidade da pessoa humana. São estes novos direitos sociais, bem como os princípios constitucionais do Direito de Família, que orientaram o novo perfil das entidades familiares.

 

1.2       AS MUDANÇAS ESTRUTURAIS E OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

A constituição de 1988 foi de suma importância para a alteração conceitual do Direito de Família, em especial quanto à apreciação de princípios como o da dignidade da pessoa humana e pluralismo familiar. O grande progresso efetivado com o novo texto constitucional é ter conferido status normativo aos princípios.

A família não era destacada nos dois primeiros textos constitucionais, que possuíam cunho político e patrimonial. O Código Civil de 1916 trazia a família, em regra, constituída por membros que derivavam do vínculo matrimonial. Já o texto de 1934 previa expressamente que a família somente advinha do casamento, este por sua vez indissolúvel, e só assim receberia proteção do estado. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a afetividade passa a figurar como princípio, ainda que não explícito, objetivo principal das relações familiares.

Neste diapasão, com a diversificação dos núcleos familiares e com início da igualdade entre os gêneros, a família passa a ser o órgão que permite a realização de seus componentes. Assim, a pluralidade familiar digna da proteção estatal surge paulatinamente.

Não há discussão sobre a soberania do texto constitucional, porém já existia a necessidade de alteração de institutos jurídicos clássicos e a criação de novos mecanismos no direito, bem como o desenvolvimento de uma visão interdisciplinar da matéria.

A análise do Direito Civil sob o prisma Constitucional é forma de assegurar o cumprimento de direitos, possibilitando a concretização efetiva destes e tem como principal objetivo a irradiação dos efeitos de normas e valores constitucionais às demais matérias do direito.

 

1.3 A PLURALIDADE FAMILIAR E OS FUNDAMENTOS DO DIREITO DE FAMÍLIA COMO FORMA DE CONCRETIZAÇÃO DA FAMÍLIA EUDEMONISTA

 

A igualdade de gêneros, consequência da revolução sexual, a globalização cultural e econômica, os direitos individuais, são exemplos dos fatos que solidificam a ideia de que o que existe hoje são “famílias”, e não mais apenas “família”, no singular. A liberdade concedida ao indivíduo para fazer suas escolhas oportunizou um número maior de opções, deixando de importar ao homem o dever de encaixar-se em um padrão.

O art. 226 da Constituição Federal afirma que a família tem proteção especial do Estado, porém há divergência quanto a sua interpretação, se o rol apresentado pelo referido artigo trata-se de numerus clausus (taxativo e restritivo) ou numerus apertus (exemplificativo).

Preliminarmente não há como afirmar que o rol legal é taxativo. Até porque esta taxatividade excluiria algumas formações do conceito de família, e qualquer discriminação com novos núcleos familiares seriam uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Além disso, o conceito de família baseado no afeto rompe com o paradigma de seguir modelos preestabelecidos e traz a baila o conceito eudemonista.

O vocábulo eudemonista origina-se da palavra grega eudaimonia e é utilizada no intuito de referir-se a busca pela felicidade. A conquista da realização pessoal trazido por este modelo resulta em uma maior isonomia social, onde todos auxiliam no desenvolvimento da coletividade, através do respeito e afeto mútuo e constante, estando intimamente ligado a ideia de liberdade: a liberdade de constituir e extinguir os laços conforme lhe parecer mais benéfico.

 

2 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO DE FAMÍLIA

 

Os princípios surgem como objetivo de expandir as normas positivadas, assim a constitucionalização destes preceitos é parte fundamental da aplicação correta das normas que regulamentam as relações particulares. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas diz respeito a todos os indivíduos, não só entre eles que atuam em igualdade, como perante o Estado.

 

2.1 A LIBERDADE E A INTERVENÇÃO ESTATAL NO ÂMBITO PRIVADO

 

Com base na importância da instituição familiar, o ordenamento jurídico procura estabelecer normas que preservem a família. Este regramento tem como base os interesses da sociedade, e, por este motivo, o limite da intervenção estatal nas relações particulares é tão discutido.

O princípio de liberdade guarda relevância com o conceito de família eudemonista, dá ao indivíduo autonomia para escolher o tipo de relação que quer construir, sem a intervenção de terceiros, desde que respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana, base de todo nosso ordenamento.

Tendo o Estado permitido aos seus membros plena liberdade de formação de seus núcleos familiares, é questionável a intervenção estatal quando não se refere a interesse coletivo, eis que resultaria em restrição à liberdade, intimidade e a vida privada de cada cidadão.

Ao Estado cabe tutelar os interesses da família e não servir como ferrenho limitador das questões que só cabem à autonomia privada, a tutela de deveres e direitos difere de restrição. Outrossim, a proteção estatal não pode resultar na transferência do Direito de Família para o Direito Público, sob pena de infringir os direitos fundamentais consagrados por nosso ordenamento.

O art. 226, § 3º da CF confere ampla proteção a todas as entidades familiares, tratando-se da liberdade um dos princípios mais importantes. A escolha do indivíduo, desde que não intervenha nas garantias inerentes aos demais, deve ser respeitada e resguardada pelo ordenamento, sob pena de invadir a esfera privada deste. Não obstante,  intervenção mínima estatal nas relações resguarda a socioafetividade, tão protegida pela legislação atual. O próprio Código Civil em seu art. 1.513 proíbe a interferência de qualquer pessoa de direito público ou privado na comunhão de vida instituída pela família.

 

2.2 O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE

 

A nova estrutura familiar rompeu com a família do século XIX, patriarcal e numerosa, passando a ser nuclear e fundada no afeto. A mulher passa a ser responsável pelo seu próprio sustento, o que colabora para fortificar os laços afetivos nas relações, findando o patriarcalismo que não mais correspondia aos avanços sociais .

A afetividade esta implícita no texto constitucional traz a família como grupo social fundado no afeto. Esta nova estrutura jurídica familiar proposta pelo texto faz surgir a dúvida se para formar uma família apenas basta o afeto, posto que este é elemento indispensável para classificar um núcleo como família. Se assim o fosse, não haveria óbice para o reconhecimento das uniões plúrimas.

Para Paulo Lôbo não só o afeto é capaz de caracterizar um núcleo como família, é necessário a estabilidade e ostensibilidade, o que poderia se traduzir de forma positiva para o reconhecimento das famílias simultâneas, desde que haja o cumprimento de tais requisitos.

 

2.3 A MONOGAMIA, O DEVER FIDELIDADE E LEALDADE

 

A monogamia, inerente ao casamento, a lealdade característica da união estável e o dever de fidelidade se confundem. O vocábulo monogamia deriva do latim monogamus, e significa um só casamento entre duas pessoas. Embora não positivada, a monogamia funciona como organizador das relações, entretanto não pode ser classificado como absoluta, deve ser analisada em consonância com as demais normas e princípios.

Com relevância ao reconhecimento das uniões simultâneas, não poderia ser negado efeito as mesmas sob a justificativa de que a monogamia é inviolável, sob pena de ferir o princípio da dignidade da pessoa humana, base de todo nosso ordenamento jurídico.

O dever de fidelidade ainda é um dos pilares da relação matrimonial, e para alguns doutrinadores a união estável também se limita por esta característica, embora utilize a expressão lealdade, adotada pelo Código Civil de 2002, não havendo entendimento uníssono nesse sentido.

 

PARTE II – A EFICÁCIA JURÍDICA DAS UNIÕES SIMULTÂNEAS

 

1 CARACTERÍSTICAS PARA O RECONHECIMENTO DAS ENTIDADES FAMILIARES

 

As famílias simultâneas se referem a um sujeito como membro de dois núcleos familiares (ou mais) concomitantemente, podendo ocorrer através de um núcleo paralelo na parentalidade ou conjugalidade. Para identificar núcleos simultâneos deve-se levar em conta o que é a família, de forma mais íntima e não no que se refere ao parentesco em geral. Contudo, podemos incorrer no equívoco que é restringir um instituto tão diversificado, sendo que excluir e limitar formações incomuns, resultando novamente nas práticas antigas, como a diferenciação entre filhos legítimos e ilegítimos.

A diversificação proveniente das alterações dinâmicas e complexas da sociedade moderna acarreta em uma indiscutível renovação constante dos modelos familiares já existentes, resultam em novos papéis e em hodiernas relações socioafetivas e jurídicas.

1.1 A SIMULTANEIDADE FAMILIAR NA CONJUGALIDADE

 

A introdução da simultaneidade familiar no ordenamento jurídico não se trata de ato simples de adaptação do instituto à norma existente, isso porque primeiramente não há como encaixá-lo em um modelo familiar já pré-fabricado, posto que inexiste previsão legal para tal.

Sob influência do direito estrangeiro, nossas normas acabaram refletindo o que não era diretamente o comportamento nacional, em especial ao que se refere na influencia religiosa – velada – sobre o Estado. Não obstante, restringir a possibilidade de constituição familiar ao casamento, celebração divina e indissolúvel, disseminou a exclusividade como imposição para obtenção de uma “família digna”. Além da influencia religiosa, o controle patrimonial foi decisivo para a determinação da monogamia e fidelidade como um dos pilares para a formação familiar. Daí porque se compreende a monogamia como pilar sólido das relações matrimoniais ao longo da história.

Paulo Lôbo assevera que a monogamia não pode ser descartada de todo, apesar de concordar que esta perdeu o status de princípio geral quando findou a exclusividade da família matrimonial e com o reconhecimento judicial de alguns casos sobre a validade do concubinato. Nesta senda, a bigamia é exemplo de simultaneidade familiar, porém expressamente proibida conforme art. 1521, VI do Código Civil.

A boa fé subjetiva é requisito imprescindível para a produção de efeitos a casamentos que coexistam como, por exemplo, no caso em que o nubente é induzido ao erro e ludibriado para acreditar que não exista impedimento por conta de um matrimônio pré-existente. Desde que não haja prejuízo ao cônjuge do primeiro casamento, uma união concomitante ao casamento, mesmo contraída de má fé (quando há o conhecimento do impedimento) pode surtir efeitos como os que a união estável produz, dependendo do caso concreto.

 

1.2 AS UNIÕES LIVRES: DO CONCUBINATO À UNIÃO ESTÁVEL COMO INSTITUTO AUTÔNOMO AO MATRIMÔNIO

 

A burocracia que cerca o matrimônio é alvo de críticas doutrinárias, e já anteriormente à Constituição Federal vigente, esperava-se uma nova legislação mais abrangente no que concerne à formação familiar cercada de direitos e deveres jurídicos, sociais e morais.

A possibilidade de dissolução do vinculo conjugal acarretou no surgimento de novas relações, através de diversas uniões de fato: as uniões livres ou famílias informais. Estas uniões formadas fora do matrimônio geralmente são representadas na doutrina pela união estável e pelo concubinato.

O concubinato e a união estável são dois institutos que se misturam e se confundem, inclusive pela doutrina e judiciário. Como a União Estável teve sua origem no Concubinato, ainda hoje é possível encontrar certa mistura entre os dois sistemas, embora não devam ser confundidos por possuírem significado e efeitos jurídicos distintos.

O concubinato é o vocábulo utilizado para referenciar a relação amorosa entre duas pessoas que, na intenção de constituir família, vivem como se casadas fossem. Na união livre há de um lado pessoas que se relacionam com exclusividade sexual e não se casam por impedimentos legais, e de outro lado há pessoas que não se importam com esta exclusividade.  Embora pouco aceito jurisprudencialmente e sem previsão legal, ambos os tipos de uniões cumprem com os requisitos para galgar status familiar, em especial quanto ao afeto, não havendo razões assim para marginalizá-las.

A União estável foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro na Constituição Federal pelo art. 226, § 3º, e mesmo que o instituto tenha sido inspirado pelo matrimonio, os dois não podem ser confundidos, eis que não possuem hierarquia. Possuem conceito próprio, individualizado. O matrimonio é antagônico a união de fato, e não seu par.

Para a perfectibilização da união estável é indispensável que a relação seja pública, contínua, duradoura e que esta união possua o intuito de constituir família. Estes requisitos estão dispostos no art. 1.723 do Código Civil, assim, como negar efeitos às famílias que cumprem tais requisitos, mesmo quando de forma paralela uma à outra?

A principal justificativa para a negativa de chancela estatal para união paralela seria o dever de fidelidade. Porém, o legislador substituiu a palavra fidelidade, exigida pelo matrimonio, pelo vocábulo lealdade (vide art. 1.724 do Código Civil). Muito embora a fidelidade derive da lealdade, a lealdade se aproxima muito mais do respeito mútuo que deve ser dispensado ao companheiro, não ficando restrito às relações sexuais, mas sim a questão mais ampla da honestidade entre os que se relacionam.

 

1.3 AS CONSEQUÊNCIAS DAS UNIÕES SIMULTÂNEAS COMO FORMAÇÃO FAMILIAR

 

É manifesta a contrariedade da tradicional doutrina e jurisprudência quanto ao reconhecimento das uniões simultâneas, uma vez que a afirmação da eficácia a estes núcleos vai de encontro ao principio monogâmico recepcionado pelo direito pátrio. Tal posicionamento foi mitigado pelos tribunais, paulatinamente, o que culminou com a edição da súmula 380 do STF.

Além da aludida súmula, outros efeitos foram sendo atribuídos a este tipo de união, como a indenização por serviços prestados, ou a divisão da pensão por morte em casos previdenciários, muito embora haja divergência de tratamento legal para a união estável e o concubinato.

Muito embora a maioria das decisões levasse a um entendimento obrigacional no Direito Civil, o reconhecimento de núcleos familiares paralelos devem ser trazidas pelo Direito de Família, ante a especialidade da matéria, posto que resulta na degradação da natureza pessoal da família, colocando seus membros como meros sócios comerciais, distorcendo a essência da entidade familiar, baseada no afeto.

Historicamente, a principal vítima de decisões contrárias ao reconhecimento das famílias espúrias foi a mulher, rechaçada por ser reconhecida pelo termo “concubina”, mesmo quando em uma união duradoura, que via o patriarcalismo suprimir seus direitos até mesmo nas situações em que era separada de fato.

Por mais que haja duvida quanto à concessão de efeitos a estas famílias, Rodrigo da Cunha Pereira encontra amparo no julgamento da ADI 4277 para sua tese da pluralidade familiar. Nesta decisão o Supremo Tribunal Federal afirma que o rol do art. 226 da Constituição Federal não pode ser encarado de forma restritiva, mas sim que o ordenamento deve oferecer guarida para todas as formas familiares, não apenas a família matrimonializada, a união estável ou a família monoparental.

 

2 O RECONHECIMENTO DAS UNIÕES SIMULTÂNEAS NO JUDICIÁRIO

 

A força dos acontecimentos e um certo clamor social encaminham o judiciário para o reconhecimento de situações não previstas em lei, buscando construir um ideal de justiça. No entanto, ante a temática analisada no presente trabalho, há de se salutar cautela, procurando diferenciar um mero relacionamento extraconjugal de um relacionamento com vínculo afetivo sólido, com intuito de constituição familiar. Assim, passamos à análise das decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, da Justiça Federal e dos Tribunais Superiores.

 

3.1 O ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DO RIO GRANDE DE SUL

 

O Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul é pioneiro quanto ao reconhecimento das uniões simultâneas, embora o seu entendimento ainda não seja uníssono.

Trazemos como exemplo a Apelação no  70011258605, embora reconhecendo a prova de que restava configurada nos autos a hipótese de duas uniões estáveis concomitantes, uma vez que ambas as uniões cumpriam os requisitos para tal, o voto do relator desproveu a apelação, uma vez que o sistema jurídico pátrio repele a poligamia. Aqui resta clara a confusão a confusão entre a poligamia e o conceito de poliamor. Importante ressaltar que a família poliafetiva é arranjo familiar divergente da união simultânea, posto que neste caso existiria o consentimento de todos os participantes. O caso dos autos não configura poliafetividade, mas sim simultaneidade familiar.

Em consonância com este entendimento, a jurisprudência da 8ª Câmara Cível, em decisão mais recente traz no julgamento das apelações interpostas por ambas as companheiras que buscavam o reconhecimento de suas uniões estáveis. As duas uniões foram reconhecidas pelo juízo a quo, uma vez que fundadas no afeto, publicidade, continuidade – requisitos intrínsecos ao reconhecimento da união estável – mesmo que coexistindo. Nas duas decisões apresentadas nota-se que não há menção ao princípio da monogamia, fidelidade ou lealdade. Enaltecem os desembargadores os laços afetivos constituídos em seus respectivos núcleos.

Em outro julgamento da 8ª Câmara Cível, contra sentença que não reconheceu a segunda união estável levando em consideração o depoimento da apelante, que não soube especificar os bens de propriedade do companheiro, embora admitam o cumprimento dos requisitos inerentes a união estável, não reconhecem a existência do affectio maritalis.

 

3.2 AS QUESTÕES PREVIDENCIÁRIAS NOS TRIBUNAIS FEDERAIS

 

As questões previdenciárias mostram-se de suma importância para demonstrar os efeitos atribuídos às uniões simultâneas sob a ótica jurisprudencial. A Justiça Federal, em entendimento já consolidado, compreende ser plenamente possível a divisão de benefício entre a esposa e a companheira de um determinado segurado. É o que demonstra a maciça jurisprudência do TRF da 4ª Região admitindo que, desde que cumprido os requisitos da união estável, a pensão por morte poderá ser fracionada entre a esposa e a companheira. As decisões em comento não demonstram predileção pelo casamento ou a união estável, o intuito é prover a justiça diante da realidade fática e não são posicionamentos isolados, levam em consideração a vulnerabilidade das dependentes e a estabilidade das uniões.

As decisões favoráveis têm embasamento na justiça social e plena liberdade de constituição familiar, conforme amplamente explanado nos capítulos supra. Porém, ante a dicotomia aqui apresentada se faz mister a análise dos julgados dos Tribunais Superiores.

 

3.3 O ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

 

As decisões do STJ estão mais conectadas com a doutrina clássica e enaltecem a necessidade de cumprimento do princípio da monogamia, porém o Tribunal admite que o judiciário não pode valer-se da ausência de previsão legal como justificativa para suas decisões. Este é o caso do Recurso Especial no 1.57.23 – RN e  Nº1.348.58 –MG. Para o STJ a fidelidade deve ser observada não só no casamento, o que obsta o reconhecimento de duas – ou mais -uniões estáveis paralelas.

De outra banda, a própria relatora do Recurso Especial Nº1.348.58 –MG admite que a 5ª Turma do STJ já apresentou diversas decisões favoráveis quanto ao rateio da pensão por morte entre a companheira e esposa . Assim, mesmo que não haja entendimento uníssono dos tribunais, o juiz em questão deve permanecer observando os detalhes de cada situação, que se apresentam de muitas maneiras diferentes em cada caso, e assim a decisão deve emergir sempre com base no princípio basilar da dignidade da pessoa humana.

Já para o Supremo Tribunal Federal, até a presente data inexiste possibilidade o reconhecimento das uniões paralelas. O voto do ministro Marco Aurélio, de 2008, é contundente e pedagógico quanto à postura adotada pelo STF, e faz menção ao direito positivado que não pode ser confundido com o raciocínio leigo ao possibilitar a atribuição de efeitos as uniões simultâneas.

Apesar de, assim como nos votos da justiça estadual apresentados anteriormente, o ministro admitir o “envolvimento forte” entre as partes, inclusive dele tendo surgido prole notável – nove filhos – ratifica o julgador que havia uma “família oficial” que dependia do de cujus. Por fim o ministro desconstitui a decisão anterior para que a união dúplice não surta efeitos.

Em decisão mais recente o STF reafirma sua opinião de haver impossibilidade de coexistência de duas famílias, sob a justificativa de inexistir cominação legal que preveja a validade de tais relacionamentos.

A despeito do entendimento do STF, exemplificado pelos acórdãos trazidos a baila há a expectativa de uniformização do entendimento sobre a questão aqui abordada. Resta pendente de julgamento o Recurso Extraordinário 883.168-SC, tendo ao presente recurso sido atribuído efeito de repercussão geral.

O parecer da PGR já exarado enfatiza a pluralidade trazida pela Constituição de 1988 e faz distinção entre meras relações sexuais e entidades constituídas pelo afeto. Entretanto entende que o Estado não deve estender sua proteção àquelas uniões constituídas sob a infidelidade.

Ante o aqui exposto, permanece a promessa de que a análise e principalmente a aplicação das normas existentes no ordenamento jurídico sejam, cada vez mais, galgadas ao espelho do que acontece na sociedade e não no “dever ser”, que se assemelha muito mais a norma moral do que jurídica, o que resulta na clandestinidade de núcleos familiares fundados no afeto, como aqui vimos exaustivamente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A presente pesquisa teve como objetivo analisar a possibilidade de proteção jurídica das uniões simultâneas, levando em consideração o caráter monogâmico de nosso ordenamento. Além disso, buscava-se compreender a importância da constitucionalização do direito civil e a inserção de princípios como garantidores da eficácia da Constituição Federal como possíveis limitadores desta proteção.

A alteração definitiva no direito pátrio ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, uma vez que colocou a união estável em igualdade com o casamento para fins de constituição familiar e, além disso, instituiu a dignidade da pessoa humana como um regulamentador de todos os atos, e por fim consagrou princípios implícitos e explícitos como a afetividade, pluralidade e liberdade. Não obstante, propagou a igualdade entre os gêneros, a igualdade entre os filhos (independente de sua origem) e a proteção integral do Estado à família.

A nova amplitude proporcionada pela liberdade, em como a família deixou de ser a concretizadora de inspirações estatais para servir de mecanismo de realização pessoal e afetiva. O objetivo exclusivo patrimonial decai, e a família passa a ter como objetivo o afeto. Nesse diapasão encontra-se a importância da discussão sobre as famílias simultâneas e sobre a possibilidade de que esses arranjos familiares surtam efeitos.

Por certo a lacuna legal existente é um dos fundamentos para a negativa a chancela estatal destas unidades familiares constituídas concomitantemente. Dado o exposto, percebe-se que ainda há muito a ser discutido sobre tema.

O dever do Estado em conferir proteção aos institutos familiares obriga o Estado-juiz ao dever de promover a igualdade e proteção integral, não podendo o mesmo omitir-se diante de ausência de previsão legal, ou colocar em situação de risco e desigualdades os indivíduos que assim escolhem formar a sua vida privada. O texto constitucional é claro: a família merece proteção total do Estado e qualquer núcleo que se caracterize como família deve receber este cuidado.

Muito embora a jurisprudência do STJ e STF negue efeitos as famílias paralelas, aguarda no STF o julgamento do Recurso Extraordinário (RE 883.168-SC) que definirá a posição atual do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

Em que pese a monogamia seja ainda o grande conector moral das relações conjugais, se há a existência e a configuração de fato de um núcleo familiar baseado na comunhão de vida, publicidade, afetividade e com a intensão de constituir família não há como eleger um núcleo perfeito em detrimento de outro, elencar qualquer que seja uma família como mais digna que outra culminaria na degradação de preceitos fundamentais concretizadores do estado democrático de direito.

 

Autoras:  Caroline Albuquerque Cabrera e Carolina Fernández Fernandes | Data de publicação: 27/09/2018

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