Direito de Família
5 de julho de 2020
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17 de setembro de 2020
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Dia dos Pais suscita atenção às famílias homotransafetivas, ao abandono paterno e à socioafetividade

Celebrado no próximo domingo (9), o Dia dos Pais deste ano terá as famílias homotransafetivas como protagonistas. Isso porque, nas últimas semanas, teve grande repercussão o convite feito ao ator Thammy Miranda para estrelar campanha comemorativa de uma marca de cosméticos sobre a data. A notícia foi acompanhada pelo rechaço de grupos conservadores e suscitou o debate sobre transfobia em todo o país.

Pai de Bento, de sete meses, Thammy comentou a polêmica em torno do assunto em entrevista à jornalista Fábia Oliveira, do jornal O Dia. “A maior representatividade não é só ser um pai trans, é ser um cara que eu realmente sou: um pai dedicado, que cuida, se preocupa, que está junto sempre, que dedica seu tempo”, destacou.

“Mais de 5 milhões de crianças no Brasil não têm o nome do pai na certidão de nascimento. Isso só prova que o pai que eu sou está bem em falta hoje em dia. Espero que essa representatividade seja em forma de amor, de inclusão e de responsabilidade. Não sou melhor nem pior que qualquer outro pai, só sou o pai que todos os pais deveriam ser”, rebateu o ator.

Antipatia seletiva

Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas – ABRAFH, o advogado Saulo Amorim é autor do Diário de Pai, em que aborda sua experiência com a paternidade. Ele define as críticas à paternidade de Thammy Miranda, unicamente por ele ser homem transgênero, como “antipatia seletiva”.

“O fato de ser um homem-trans não o desqualifica como pai. A contrario senso, todos os homens cisgêneros seriam qualificados para a paternidade apenas por atenderem ao critério da conformação biológica dos corpos. Infelizmente, sabemos que a realidade brasileira não é essa”, destaca Saulo. Ele atenta às múltiplas realidades de pessoas que crescem sem a presença do pai em registros e, principalmente, no dia a dia. Por vezes, a contribuição financeira é usada na tentativa preencher a carência de cuidado e afeto.

Segundo o advogado, a polêmica em torno da paternidade transgênera evidencia o preconceito jacente daqueles que apenas conseguem ver gênero como aspecto biológico e não enxergam a construção sócio-cultural. “Na propaganda, vemos uma pessoa com apresentação nos padrões masculinos segurando uma criança de forma bastante afetuosa. Que mal há nisso? O fato de aquele homem não ter aparelhos genitais masculinos? Um homem para exercer a paternidade precisa tê-los? Aliás, qual a importância das genitálias no desempenho das funções paternas? Com certeza, nenhuma”, defende Saulo.

“Creio que nem Freud patrulharia tanto os corpos paternos. A paternidade não está vinculada aos genitais e muito menos ao uso que damos a eles. Está acima do biologismo, simplesmente porque as relações e os afetos não se limitam às estruturas biológicas dos corpos”, acrescenta o advogado.

Ele destaca que o estereótipo anacrônico de paternidade, como um homem provedor e mantenedor da ordem em família, é o oposto do que, de fato, necessitamos e experimentamos como sociedade. “Cada vez mais percebemos que, na cesta básica da saúde mental e emocional da infância, os principais elementos são a atenção, o cuidado, o carinho e o amor. Limites, um lar confortável e comida à mesa são também importantes, mas se não são servidos com afeto, de nada valem.”

“Felizes são os lares onde pais e mães são representações em dualidade de equivalente cuidado e devoção. Não há nada que um pai não possa fazer, nem atribuições que uma mulher não possa desempenhar. Porque nem toda mulher consegue amamentar ou é vocacionada à gestação. Assim como não existe homem incapaz de trocar uma fralda ou administrar uma medicação”, ressalta Saulo.

Argumentos discriminatórios e infundados

Em suma, os questionamentos sobre a possibilidade de um homem transgênero ser pai são discriminatórios e infundados, segundo Saulo Amorim. “A paternidade não se estabelece apenas por um vínculo biológico. E, mesmo que assim fosse, quantos homens trans também não decidem gerar filhos em seus úteros? Sim, homens também engravidam e essa é uma realidade”, destaca.

“A questão está justamente na incapacidade de algumas pessoas de conceber a identidade masculina fora dos padrões heteronormativos e biológicos. Essas pessoas não se dão conta de que o argumento ‘só existem homem e mulher’ é desonestidade intelectual ou ignorância voluntária. Afinal, como classificamos as pessoas intersexo que nascem com cariótipo XXY ou com genitália ambígua (intersexo)?”, indaga.

Ele observa que, na busca por enquadrar a diferença e a diversidade em valores morais e religiosos, são utilizados exemplos disfuncionais para crucificar toda a população LGBTI+. Uma postura, segundo o advogado, baseada em limitações e preconceitos de cada um. “Exemplos ruins existem em todos os lugares, mas nem todo pastor é ladrão e nem todo político é corrupto. Precisamos pautar as discussões com os pés no chão e focados em relações funcionais”, defende.

De acordo com Saulo, sequer existem dados científicos que apontem diferenças no desenvolvimento de crianças em seio de famílias homotransafetivas, já que não se trata de um fenômeno relevante a ser pesquisado. “Os que se preocupam se uma pessoa transgênera pode influenciar na identidade de gênero dos filhos se esquecem que a enorme maioria das pessoas trans são filhas de pessoas cis e que a identidade de gênero dos pais não determinou a dos filhos.”

“Sabemos sim que, na perspectiva da Psiquiatria e da Psicologia, o núcleo de identidade de gênero de todo ser humano se forma muito cedo. Filhos de pais transgêneros não serão influenciados por suas identidades, assim como filhos de pais cisgêneros não são”, assinala Saulo.

Estrutura patriarcal

Conforme destacado por Thammy Miranda em entrevista ao jornal O Dia, o Brasil tem 5,5 milhões de crianças sem o reconhecimento paterno em registro. O dado é do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, com base no Censo Escolar, divulgado em 2013. “A revolução cultural e jurídica das últimas décadas – que transformou a visão jurídica de família, tornando-a inclusiva e plural – ainda não foi capaz de tirar do papel, de forma definitiva, a arraigada e pungente estrutura patriarcal”, avalia a oficiala de registro civil Márcia Fidelis, presidente da Comissão de Notários e Registradores do IBDFAM.

“Essa configuração familiar, como o próprio nome indica, sempre privilegiou o homem e subjugou a mulher. As tarefas domésticas, incluindo nelas a criação e os cuidados com os filhos, sempre couberam às mulheres. Essa cultura, incutida à ferro e a fogo, ainda deixa e com certeza deixará marcas profundas na sociedade por muitos anos”, acrescenta Márcia.

Segundo a especialista, a falta de responsabilidade e de compromisso de muitos homens em relação à paternidade são reflexos de um legado que coloca a mulher como única responsável pela prole, inclusive após o fim do casamento. Somando-se a tudo isso, o divórcio impõe, em muitos casos, a guarda unilateral e a construção da máxima de que “lugar de filho é com a mãe”.

“A soma de todos esses fatores influencia diretamente na quantidade exorbitante de registros de nascimento em que apenas a maternidade é estabelecida. Isso porque, quando a mãe não é casada com o pai, este tem que reconhecer pessoalmente a paternidade. Ou seja, mãe e filho dependerão de um ato de vontade desse homem para que, no mínimo, ele arque com a responsabilidade de ter originado uma criança”, observa Márcia.

Além do vínculo biológico

A diretora nacional do IBDFAM destaca que nem sempre o genitor será efetivamente o pai da criança. “Os testes genéticos, que constatam a ascendência biológica de uma pessoa em relação a outra, trouxeram muito progresso no campo da paternidade posto que permitem diferenciar o direito das pessoas de conhecerem a sua origem genética do direito que envolve a relação de filiação”, observa Márcia.

“Contudo, ao mesmo tempo em que se privilegia a realidade de cada família ao se reconhecer juridicamente suas relações fundadas no afeto, independentemente da consanguinidade, não se pode olvidar que muitas pessoas não têm mesmo um pai, nem no registro, nem biológico e nem de fato”, pontua.

A oficiala de registro civil propõe uma reflexão acerca dos efeitos do parentesco de filiação, atentando à possibilidade de abandono afetivo. “Ser pai ou mãe de uma criança, de um ser em construção, está muito longe de ser exclusivamente dar-lhe o sustento, de contribuir para seu amparo material. Um ser humano precisa construir sua personalidade tendo como base uma relação de afeto”, destaca Márcia.

De acordo com a especialista, é raro que nasçam reais relações paterno-filiais decorrentes de ações de investigação de paternidade que tramitam na Justiça para requerer a inclusão do nome em registro e a definição de alimentos para o filho. “Quase sempre o que se tem é uma contribuição material para a manutenção das despesas da criança. Isso, por si, não deveria configurar paternidade”, opina.

Contorno vago e deletério

“A legislação atual equipara o pai ao genitor para que este cumpra com seus deveres. A paternidade tem um contorno vago, quando não deletério, para essas pessoas que têm um nome de ‘pai’ no seu registro de nascimento, mas com ele não convive. É essa a imagem que o filho levará para a sua vida, postergando ainda mais o fenecimento efetivo do patriarcado”, explica Márcia.

Ela pondera que a sociedade não está apática a essas situações e a consolidação da pluralidade da família vem sendo buscada continuamente. “São diversas as conduções que apontam para a concretização dessas novas realidades. A guarda compartilhada é uma delas.”

“Mudanças na licença maternidade, para que seja transformada em licença filiação, sendo atribuição de qualquer dos pais acompanhar os primeiros meses do bebê, também é uma providência importante. E, para diminuir eventuais obstáculos, esvaziando qualquer argumentação protelatória de efetivar o reconhecimento da paternidade, os procedimentos junto aos Serviços de Registro Civil das Pessoas Naturais foram simplificados, todos os custos foram excluídos, sempre em benefício do melhor interesse da criança e do adolescente”, exemplifica a oficiala.

Parentalidade socioafetiva

Diante da perspectiva de milhões de crianças sem o reconhecimento do vínculo biológico em registro, ganha ainda mais relevo a parentalidade socioafetiva. É o que afirma o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do IBDFAM. “Se ficássemos restritos aos vínculos biológicos de paternidade, seria ainda mais difícil de consagrarmos e reconhecermos pessoas que exercem a paternidade das crianças”, aponta.

Da mesma forma, abarca-se a multiparentalidade, quando uma criança pode ser registrada por mais de duas figuras parentais. “Essa amplitude e pluralidade, que passou a ser admitida no Brasil com o reconhecimento do vetor socioafetivo, vem permitindo que muitas tenham contemplados seus vínculos socioafetivos de filiação. Confere-se, então, maior dignidade a esses laços vividos socialmente, outrora não reconhecidos juridicamente”, acrescenta Calderón.

“O Direito de Família contemporâneo brasileiro tem uma vanguarda mundial em muitas temáticas, inclusive no reconhecimento dos vínculos socioafetivos. Nosso ordenamento traz locuções que concedem um espaço a essas realidades”, define o advogado. Ele cita o artigo 1.593 do Código Civil, que atenta a parentescos de “outra origem”, permitindo à doutrina e à jurisprudência uma interpretação em nome de vínculos além do biológico.

“Pai é quem cria”

Para Ricardo Calderón, tais realidades são velhas conhecidas da população brasileira. Prova disso é o dito popular “Pai é quem cria”, subjacente à noção da filiação socioafetiva, conhecido de norte a sul do país. Há um entendimento consolidado de que a paternidade “não é necessariamente desempenhada pelo ascendente biológico, mas por quem exerce a função paterna na realidade concreta”, diz ele.

Por outro lado, os direitos conferidos a tais situações ainda são desconhecidos de parte dos brasileiros. “O que muitas vezes a população não tem conhecimento é dos direitos atrelados a essa realidade, das possibilidades facultadas no nosso ordenamento para registro desses vínculos e das consequências que advirão deles”, observa o advogado.

Com frequência, os operadores do Direito veem a surpresa das pessoas ao serem informadas dos efeitos jurídicos dessas situações. “É necessário avançarmos no esclarecimento das consequências jurídicas dos vínculos socioafetivos para que possamos fazer com que essas possibilidades cheguem ao maior número de pessoas”, atenta Calderón.

“Amo, logo existo”

O ordenamento jurídico brasileiro, segundo advogado, conta com certa riqueza e dinamicidade ao dialogar e procurar abarcar de maneira adequada e tempestiva as relações sociais. Permite, desta forma, o reconhecimento de um feixe de realidades, trazendo as respostas demandadas pela infinidade de configurações familiares na sociedade contemporânea.

“A parentalidade no Direito de Família é um conceito plural, que abriga vínculos biológicos, registrais, socioafetivos, adotivos, por reprodução assistida, entre vários outros, com o princípio da igualdade entre eles assegurado. Essa pluralidade de elos familiares demonstra a riqueza do nosso Direito de Família, sua coloração e vivacidade ao traduzir a realidade brasileira”, aponta Calderón.

A temática está em constante avanço, segundo ele. Provimentos recentes facilitaram que tais situações sejam reconhecidas extrajudicialmente, em cartório de registro civil, de maneira célere e pouco onerosa. Ser pai pode abrigar diversos conceitos e configurações, e, na opinião do advogado, o ordenamento jurídico brasileiro traz um esforço contínuo em proteger essa pluralidade.

“Toda a discussão se dá sob o paradigma da afetividade. Como afirmou o professor italiano Stefano Rodotà (1933-2017), o cogito moderno não é mais ‘Penso, logo existo’; seria chegado o momento, neste início de século XXI, de falarmos ‘Amo, logo existo’”, conclui Calderón.

Fonte: Assessoria de Comunicação do IBDFAM

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